Banho

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Banho

Dou graças, meu banheiro não tem um espelho, pois se tivesse, teria que olhar para mim mesma todos os dias.  Olhar para si mesmo  é navegar por mares nunca antes aventurados, acordar o próprio gigante Adamastor.
O que é o gigante Adamastor, senão, uma proteção do Oriente contra o Ocidente? Um monstro que obrigada a todos o medo, que barra qualquer coisa que venha de fora. Nós mesmos somos as águas turvas da ponta Sul da África, que por vezes, em dias de Sol, chamamos de Cabo da Boa Esperança.
Abro o chuveiro, a água corre violenta pelo meu corpo frio. Posso sentir todos os meus pêlos arrepiados com o morno oceano. Ensaboo minha pele, tiro todo o óleo do Sudeste, da camada protetora do meu país, e me deixo sentir minha verdadeira terra, seco chão do Sertão.
Sem amores, este chão muito judiado se acostuma com o recesso de chuvas quentes, se acostuma com os “Bons Dias” banais de um cotidiano. Uma camada fina entre o exterior e interior, entre o mar Pacífico e o Mar Indiano.
Aquela água, vinda do esgoto mais sujo de todo o meu ser, agora me limpa com suas palavras escrotas, e eu me contento com a amena temperatura,com a mesmice que toda mulher sente, que todo homem sente, que sentimos.
Meu couro cabeludo cheio de cascas, estas que são fruto de um estresse continuo. Nem o shampoo, material invetado por nós, para limpar um nós que predomina, não consegue arrancar toda essa capa de cansaço de minha cabeça.
Rodopio. Quase  escorrego no liso chão do box. Me coloca a risca, e de minha boca, sai um som de ritual, uma música antiga, uma reza que antes não se conhecia. Desejo a todos os meus internos navegadores boa sorte ao descobrirem novos mares. Pois eu mesma, tenho medo do que  tem no meu  centro.
Mas é isto, vivemos no lado mais central do mundo. O ocidente dorme em cima de um lugar tão lindo, do Éden, de Dionísio. Acabo o banho, pego a tolha e violentamente tiro toda a água, suja de pensamentos de mim. Consumida por uma coragem nunca antes presenciada, meu coração para de bombear o líquido vermelho e  passa a bombear confianças e medos.

Olho-me no espelho de meu quarto. Me vejo, ser humano, ali, viva, presente. Pego um lápis e me risco inteira, assinalo no mapa os novos lugares que devo navegar. Me descobri com o desconhecido, e me cobri de sonhos. Assim sou.

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